Maio 17 2010

No último post teci alguns comentários críticos em relação aos sectores mais conservadores da igreja e a algumas das suas ideias mais reaccionárias. Há porém entre a cristandade quem tenha vindo a chamar a atenção para uma questão do maior relevo no momento actual, de forma que considero positiva. Trata-se da denúncia da lógica prevalecente no capitalismo globalizado emergente da queda do Muro de Berlim e da desregulação da economia mundial.

Vivemos uma crise ampla, profunda e geradora de incertezas. Trata-se de uma crise financeira, económica e social e não se sabe ao certo nem como nem quando terminará, nem tão pouco as sequelas que deixará.

Esta crise encontra as suas raízes mais profundas numa inversão de valores: o capital financeiro deveria estar ao serviço da economia e do investimento económico, e este deveria estar ao serviço da sociedade e do bem-estar das pessoas. Com sentido de justiça, a prioridade seria dada aos grupos mais vulneráveis.

Vivemos porém num tempo sem regras, em que os interesses privados do mercado, sem controlo, escrutínio nem regulação públicos, se impõem aos interesses colectivos das pessoas. Os trabalhadores, com cada vez menos direitos, são vistos nesta cultura do capitalismo neo-liberal como meros recursos de que o mercado se serve de forma livre e sem controlo. A gestão de boa parte das empresas orienta-se não para a sua existência tão longa quanto possível no desempenho da função  económica e social de lugar de produção e de trabalho, mas para o curto prazo do valor das acções na bolsa. O capital financeiro torna-se predominante e, dentro deste, o seu segmento especulativo, o mais inútil e perverso, sem legitimidade e de legalidade por vezes duvidosa, impõe uma lógica de manipulação dos mercados e das economias que apenas favorece os centros de decisão financeira e em particular os próprios especuladores

Foram estes segmentos os responsáveis pela crise. E são agora eles que a prolongam, por via do mais despudorado ataque a economias nacionais europeias e à própria Europa, numa tentativa de pôr fim ao modelo social europeu, o principal referencial de progresso pelo qual a humanidade se pode guiar nos tempos que correm.

As primeiras respostas políticas à crise em quase toda a Europa, onde predominam governos de direita, de centro direita e de socialismo pouco convicto, optaram, bem, por proteger os sectores mais vulneráveis da população e, principalmente (mal), por apoiar o sistema financeiro, muitas vezes para além do que seria razoável. Esta segunda vertente foi a principal consumidora de recursos. No fundo, a principal geradora de elevados défices das contas públicas.

Os especuladores, responsáveis pela crise, em vez de receberem castigo, beneficiam dela. E prosseguem ao ataque, escolhendo entre o rebanho do Euro as reses mais fracas (nem sequer as que têm maior défice, mas as mais periféricas). As consequências podem ser devastadoras.

Como respondem os governos? Adoptando como prioridade exclusiva o controlo do défice do estado, ainda que à custa do crescimento económico, dos rendimentos dos cidadãos e da degradação das condições de vida dos mais desfavorecidos.

Aceitando pôr em risco a frágil unidade europeia submetendo-se aos interesses egoístas do governo alemão. A Europa, em vez de aprofundar a União em bases democráticas, divide-se e cava diferenças entre os estados poderosos do centro e os estados periféricos, compelidos a seguir as políticas determinadas pelos primeiros.

Já não é a primeira vez que isto acontece. Após a crise de 1929 foi adoptada uma receita semelhante. Aumentou o desemprego, cresceu a xenofobia e o apoio ao totalitarismo político. Não se venceu a crise económica, expandiu-se a crise social, a legitimidade das democracias foi posta em causa e a competição no espaço europeu pela dominação do mundo desembocou na II Grande Guerra.

É certo que hoje a Europa já não é o centro do mundo e que as economias emergentes, como a China, a Índia ou o Brasil, jogam um papel que já não é só de mercados para as manufacturas europeias. Pelo contrário, reclamam uma Europa afluente para colocar os seus produtos, o que pela primeira vez nos últimos milénios pode colocar o velho Continente na periferia da história mundial.

Em Portugal, por alturas da crise de 29, também tivemos a nossa lição. Um certo ministro das finanças conseguiu o milagre de colocar as contas do estado em dia, mas mergulhou o país num processo de subdesenvolvimento que durou meio século.

Tudo nos é apresentado como se não houvesse outro caminho. Como se a aceitação dos sacrifícios tivesse de ter exactamente o formato que tem.

Ora, seria possível uma maior solidariedade dentro do maior mercado do mundo (que poderia ter outros mercados como aliados) para responder aos ataques que uns dizem ser do mercado (como se o mercado fosse mais do que um conceito), mas que são dos especuladores. Seria também possível estabelecer regras mais duras (ajustadas à dimensão do problema) de controlo dos segmentos especulativos e inúteis do sistema financeiro.

A nível nacional, seria possível adoptar políticas de maior equilíbrio e compromisso entre o crescimento da receita e a diminuição da despesa, de modo a reduzir o défice preservando o investimento, o crescimento económico e o emprego. Cuidando dos mais fracos. Tirando partido daquilo que é a vantagem da Europa, a qualidade das suas sociedades. Não aceitar as regras do liberalismo, mas voltar aos princípios que melhor funcionaram, os do socialismo democrático, com preocupações de eficiência económica, mas também de justiça social, ela própria um activo económico determinante

publicado por cafe-vila-franca às 22:26

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No Café Vila Franca, como nos cafés da trilogia de Álvaro Guerra, os personagens descrevem, interpretam e debatem a pequena história quotidiana da sua terra e, com visão própria, o curso da grande história de todo o mundo.
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