Janeiro 23 2021

Num registo sério, publiquei há poucos anos um artigo numa revista holandesa tentando mostrar a razão pela qual os europeus de países do Sul são classificados pelos do Centro e Norte como PIGS, ao passo que noutras zonas do globo se exaltavam os chamados BRICS. Essas classificações são apenas preconceituosas. No fundo, são racistas, na medida a que atribuem a causas genéticas traços de caráter das pessoas.

Estas classificações constroem-se sobre estereótipos que pretensamente representam a idiossincrasia dos povos. Assentam em generalizações falsas e equivocadas. Quer quando dizem bem, quer quando dizem mal. Por exemplo, os italianos são apaixonados e as francesas liberais, os alemães são austeros enquanto os suecos se suicidam, os gregos esbanjadores e os holandeses frugais. Ou os ciganos trapaceiros e os alentejanos pessoas cheias de humor, os negros preguiçosos e os judeus agiotas, os espanhóis dramáticos e os finlandeses reservados, os russos calculistas e os portugueses saudosistas. É muito fácil, na verdade, encontrar italianos, francesas, alemães, suecos, gregos, holandeses, ciganos, alentejanos, negros, judeus, espanhóis, russos ou portugueses que não são nada como os estereótipos os descrevem. Na verdade, a esmagadora maioria de qualquer deles é bem diferente, e aqueles que correspondem à imagem, diferem de todos os compatriotas na maioria das coisas que compõem a sua personalidade.

Este tipo de preconceito racista é muito frequente. Corresponde, de facto, a representações amplamente partilhadas. E aparecem ditas ou escritas mesmo por pessoas que se dizem convictamente antirracistas. Por exemplo, no dia 22 de dezembro um editorial do jornal Público assinado por Manuel Carvalho, que em geral gosto muito de ler, com o título “os britânicos nunca caminharão sozinhos”, diz-se que os súbditos de Sua Majestade se distinguem pela “bravura e arrogância”, ao passo que os franceses apresentam um “proverbial cinismo” na forma como olham para os seus vizinhos de além Mancha. Ora, quem não conhece britânicos medrosos e humildes, e franceses francos? As generalizações abusivas são sempre perigosas, porque frequentemente o estereótipo se transforma em estigma.

A recusa deste tipo de classificações estigmatizantes é condição da construção de uma sociedade menos preconceituosa e mais aberta.

publicado por cafe-vila-franca às 15:44

Janeiro 21 2021

O jornal Público de 22 de dezembro de 2020 tinha na rúbrica Escrito na Pedra uma frase do genial Fernando Pessoa. Está escrito que “O Homem não sabe mais do que os outros animais: sabe menos. Eles sabem o que precisam saber. Nós não”. Aos poetas permitem-se sempre todos os erros, como é o caso. Se provas fossem necessárias de que até as mentes mais geniais podem produzir as maiores asneiras, este seria um deles. Se os animais soubessem o que precisam de saber, como se deixariam controlar, comer e, às vezes, até extinguir por ação de outros animais ou do homem? Além disso, só um homem poderia dizer que não sabe tudo o que precisa de saber. Esse é o princípio do verdadeiro conhecimento, a consciência dos seus próprios limites.

Outro grande pensador nosso contemporâneo, Noval Harari, escreve nas suas 21 lições para o Século XXI que um caçador-recoletor da idade da pedra lascada sabia mais do que nós. Sabia de onde tinha vindo o seu almoço, porque ele próprio o tinha recolhido, caçado ou pescado; quem lhe tinha feito os mocassins, porque dormia com essa pessoa, e onde estava o seu seguro de velhice, o filho que brinca ao seu redor. Nós não sabemos quem fabricou os nossos sapatos, nem quem produziu e transportou até nós os alimentos que consumimos, e ainda menos como se gerem os fundos de pensões. Mas sabemos mesmo menos? O cérebro é o mesmo, é certo. Mas a vida é de tal modo mais complexa que, se na nossa memória coletiva não se tivessem acumulado biliões de informações que usamos no nosso dia a dia, viveríamos como os animais domésticos totalmente dependentes do dono. E isso não queremos, pois não? Então vamos lá usar este magnífico cérebro que com que a natureza nos equipou para fazermos mais do que alguma vez podem fazer os animais e para superarmos o medo permanente em que viviam os nossos antepassados longínquos, porque é esse medo que nos faz procurar refúgio nos tiranos.

publicado por cafe-vila-franca às 11:22

Janeiro 16 2021

Ainda dura a campanha para substituir a Ministra da Justiça. Os jornais quiseram primeiro demitir o Ministro do Interior, mas o pragmático Costa resolveu dizer que quem manda é ele. E nem o Presidente, mais vulnerável à pressão mediática, o convenceu. E não convence. O que me traz ao assunto é a opinião de que nada se resolve com a demissão da Ministra. Não me interessa nada se é demitida ou se demite, ou não. Mas a Justiça preocupa-me. E não muda porque muda o ministro da pasta.

A Justiça é um pilar essencial do Estado de Direito. Por isso o poder judicial é independente do poder legislativo (Assembleia da República) e do poder executivo (Governo). Se a Justiça não é justa, perde-se a autoridade do Estado e a confiança dos cidadãos, instala-se a lei do mais bruto e a desregulação da vida coletiva.

Quem já viu o fresco numa parede antiga em Monsaraz, sabe como a justiça pode tapar os olhos para os crimes dos ricos, enquanto brande a espada contra os pobres. Mas isso era na Idade Média. Era?

Parece que não! O poder judicial tem uma grande fragilidade em relação ao poder legislativo e ao poder executivo: os seus agentes não são eleitos. Na verdade, são cooptados dentro do próprio sistema. De acordo com as leis, dir-me-ão. Mas são as leis que o próprio sistema produz, respondo eu. Ora, como qualquer sistema, também este tem abertura a influências externas, e as que contam continuam a ser as dos mais poderosos.

Está claro que para os pobres é melhor a existência de um sistema de leis formais e de um corpo profissional encarregue de as aplicar, do que ficarem sujeitos ao arbítrio e à prepotência absolutamente descontrolada dos poderosos. Mas para ser justa, isenta e equilibrada, a Justiça precisa de autoridade. Ora, alguns casos recentes têm revelado vulnerabilidades preocupantes.

Um primeiro, a comunicação social deixa passar em claro, como se nada fosse. O Juiz Rui Teixeira apresentou uma providência cautelar contra uma decisão de não ter sido selecionado num concurso que o preteriu para um cargo a que se candidatou. O Rui Teixeira? O mesmo que meteu um inocente (foi o próprio sistema de justiça que o atestou) na prisão? Sim esse mesmo! Responsável também pela indemnização que o Estado foi obrigado a pagar por causa das más decisões do Juiz que queria ser justiceiro. Provavelmente, se fosse um político ou um mero funcionário, seria demitido. Com razão. Mas como é Juiz, o sistema ainda lhe dá a possibilidade de ser promovido. Podemos confiar neste sistema? Quem me diz a mim que, indo parar às mãos de um Juiz como o Rui Teixeira num processo qualquer em que fosse falsamente acusado, não seria mais uma vítima da sua postura preconceituosa? Os Juízes não são eleitos (nem demitidos) pelos cidadãos. O que obrigaria o sistema a ser mais cuidadoso na cooptação, nos concursos, nos processos disciplinares. Para sua própria defesa contra pessoas como o Juiz Rui Teixeira.

O segundo fez e faz parangonas nos jornais. O Ministério da Justiça enviou para o Conselho Europeu um currículo falsificado de um candidato português a Procurador Europeu. E isto num processo em que outras coisas esquisitas se passaram, a acreditar nas notícias, como ter havido um Comité de Peritos que ordenou os candidatos ao cargo definindo critérios de seriação apenas depois de saber quem eles eram, ou como ter havido rivalidade entre o Ministério Público e o Conselho Superior de Magistratura. Como não ando à procura de fazer rolar cabeças de ministros ou diretores gerais, interessa-me mais olhar para a coisa para além da espuma dos dias. O caso foi novamente produto do sistema de Justiça. Ouvimos com demasiada frequência falar de trafulhices na Justiça, mas como poucos envolvem os políticos profissionais (falo assim para os distinguir dos políticos mascarados de magistrados, procuradores, etc.), só alguns é que ganham proporções, já que bater na política é a ocupação principal de jornalistas, Ordens profissionais, Juízes. Tal como ouvimos sobre as polícias (SEF incluído). Não alinho na teoria de que o nosso país é um caos. Longe disso. Mas que estas coisas nos obrigam a estar atentos e desconfiados, obrigam.

publicado por cafe-vila-franca às 23:49

Janeiro 10 2021

Por ironia, nos EUA como em muitos países Europeus, incluindo Portugal, as classes sociais perdedoras da globalização, descontentes com o sistema que as tem vindo a excluir, foram cooptadas pelo representante político do poder económico especulativo e selvagem que as excluiu. De forma obviamente simplificada, a coisa passa-se assim: a globalização tem sido comandada, nas últimas décadas, pelo capitalismo financeiro dos novos senhores feudais globais; esse capitalismo controla os governos das democracias menos consolidadas como se fossem os seus feudos, e impõe sistemas de produção no esclavagista aos trabalhadores do Sul Global. No Norte Global, com instituições democráticas e Estados Providência mais consolidados (o que faz com que os eleitores vetem a agenda neoliberal de desregulação do mercado de trabalho na sua plenitude), não conseguem ir tão longe. Mas também corrompem governos, partidos, Tribunais, Polícias e outras instituições, e impedem-nos de responder convenientemente às necessidades daqueles que perdem – o emprego, o rendimento, o negócio, o futuro – com a globalização e com a revolução tecnológica. Os perdedores, julgando justamente que se encontravam mais seguros e afluentes no passado, olham para ele nostálgicos. Tornam-se conservadores ou até reacionários. Preferiam que o tempo andasse para trás. Como não anda, ironicamente, culpam aqueles que, no sistema político, era suposto defendê-los, protegê-los e criar oportunidades para os menos favorecidos. E apoiam os seus verdadeiros opressores.

Não culpam os responsáveis, mas apenas os seus criados. Quanto a esses responsáveis, prosseguem os seus esforços de destruição da democracia e das políticas redistributivas, montando bem orquestradas e eficazes campanhas de intoxicação da opinião pública, respaldadas em avultadíssimos meios para tirar partido da exclusão que criaram e cavalgar as suas vítimas na investida contra a democracia e o Estado Social.

Essas campanhas visam instaurar um clima de medo, a negação da ciência, o total desrespeito pela verdade, e a violação de princípios da decência e da dignidade humana. Exploram os mais baixos sentimentos do ódio e da inveja.  Diabolizam a política e a causa pública e acenam com os espantalhos de sempre: os estrangeiros, os pobres (na Vila Franca da minha meninice as mães controlavam as crianças dizendo que mandavam chamar o “Escuta”, e muitos dos seguidores dos direitistas dos nossos dias parecem criançolas), os ciganos, os judeus, o que for, e ainda, claro…os socialistas e os comunistas, que são toda a gente, desde o Papa Francisco ao qualquer funcionário público que no seu guiché cumpre a missão de que está incumbido, menos eles próprios e os seus cães de fila.

Essas campanhas transformam-se em programa de profissionais da política que se afirmam cinicamente contra a política e os políticos, contra o sistema, dizem eles, que têm em dobro todos os vícios de que acusam os outros. Falamos de figuras tenebrosas como Trump, Le Pen ou, passe a elevação a um nível que gostava de ter, mas não tem, Ventura, para muitos de nós apenas “o coiso”.  São eles os “testas de ferro” das mega empresas do capitalismo financeiro que gere a globalização. Que arregimentam uma tropa fandanga trauliteira, de gente frustrada e mal educada, pronta a transformar-se em polícia política ou chusma à volta do tacho num qualquer regime totalitário que aí possa vir. É fácil distingui-los daqueles que, iludidos, seguem os líderes populistas, racistas, xenófobos, eurocéticos e ultra-nacionalistas que comandam a globalização neoliberal que os colocou na situação em que se encontram,.

O trágico é que os perdedores da globalização, quando perceberem o logro em que caíram, pode estar muito mal já feito. O perigo é real. O bando que vem em pés de veludo poisar nas redes a vociferar que a extrema esquerda também é totalitária, não deixará de vir aqui também tentar enlamear o debate. Mas é preciso lembrar que, hoje em dia, a ameaça vem mesmo destes proto-fascistas, como o recente assalto à casa da democracia americana, o Congresso em Washington, vem mostrar com total limpeza. Só não vê quem não quer ver. Dramaticamente muitos não querem ver. Ironicamente, a maioria são os que mais perdem.

Para aqueles que dizem que culpa é dos democratas de esquerda, que se deixaram corromper, direi que isso é muito menos de meia verdade. Primeiro, porque os que se prestam a perverter o sentido republicano de serviço público são, na verdade, uma minoria. São muito maus, têm poder, mas são uma minoria. Em segundo lugar, porque a cobertura aos populistas xenófobos tem sido feita pela direita dita moderada, e não pela esquerda. Foi assim nos Açores e, mais visivelmente, foi assim nos EUA, onde os republicanos foram assistindo a toda a espécie de desmandos e ameaças de Trump, sem reagir, por mera partidarite. Triste. Mas deu para ver até onde é capaz de ir a extrema direita uma vez no poder.

publicado por cafe-vila-franca às 18:00

Dezembro 21 2020

Sei que agora é quase Natal e não há paciência para escritos chatos e compridos. Mas acontece que, de vez em quando, me vêm certas ideias à cabeça e, enquanto não as partilho, não descanso. Assim, para aqueles que possam arranjar um bocadinho de tempo e não se importem de ler escritos cuja leitura leve mais de 5 minutos, aqui vai o que penso sobre algumas formas como o poder é ocupado no nosso país, e não só.

Max Weber, uma referência incontornável nestas matérias, falou de três fontes de autoridade: a carismática, a tradicional e a legal/burocrática. As três fontes não são exclusivas. A autoridade legal/burocrática tornou-se largamente predominante no mundo moderno. Ela tem implícito o primado da racionalidade sobre as emoções e as tradições (razão, emoção e tradição combinam-se, claro está, em proporções diferenciadas em cada formação política concreta). Ora, a racionalidade implica que, no exercício da autoridade e do poder, se tomem decisões baseadas principalmente na relação entre os fins e os recursos a eles afetos. O problema que aqui coloco é o da legitimidade desses fins.

É certo que, nas democracias, a legitimidade resulta do voto popular, e que cada cidadão vota em função dos seus interesses e da apreciação que faz da possibilidade de cada candidato corresponder a esses interesses. É aí que entra a razão, embora saibamos que muitos desses cidadãos votam de forma tradicional, em quem sempre votaram, ou em função do carisma dos candidatos, no mais simpático. Além dessa intromissão de fatores não racionais no processo político racional, acresce um problema maior: a frequente ocultação dos verdadeiros fins que perseguem os candidatos à ocupação do poder do Estado. Não vou aqui tratar dos modos como se produz essa ocultação e como se ludibriam os tolos. Mas apenas salientar que a escolha racional implica acesso à informação verdadeira, capacidade para a processar e a distinguir da falsa, critérios que quase sempre estão longe de se verificar.

Assim, nas democracias representativas (depois trataremos da questão da participação democrática), regimes políticos baseados no primado da lei, na defesa das minorias e no respeito pela vontade das maiores expressa no voto, é possível que alcancem o poder pessoas e grupos que estão longe de ter como fim o bem comum.

A prossecução desse fim anima a maioria dos políticos (é a minha opinião), que se regem por princípio seculares e republicanos. Mas muitos outros têm fins inconfessáveis. Por exemplo, colocar em primeiro lugar o benefício próprio, da família, ou dos amigos, no acesso a empregos sem mérito, na concessão de honrarias, na abertura de oportunidades vedadas a outros, e ainda no recebimento indevido de dinheiro. Quem ocupa o poder desta forma marcada pela corrupção, pelo nepotismo e pelo compadrio acaba, no fim, por pôr em causa a própria democracia e o seu valor. Outros atuam com o objetivo único de conservar o poder, fazendo dele não um instrumento para a promoção de políticas públicas de qualidade, mas um fim em si mesmo. Estes geram o autoritarismo e secam a democracia, porque a sua ação é precisamente o seu contrário.

Facilmente concordaremos que os piores políticos acumulam essas duas formas de estar no poder: estão lá primeiro para o conservar, e depois usam-no em benefício próprio e dos compadres. Mas, como dizia Weber, todo o poder é consentido. Assim, na verdade, eles só ocupam o poder se os cidadãos os elegerem ou se, ingenuamente, se deixarem enganar e, em vez de escolher pessoas sérias e comprometidas com a causa pública para os substituir, votarem noutros ainda piores. E não é que isso acontece tantas vezes?

publicado por cafe-vila-franca às 00:14

Dezembro 19 2020

Obrigado emigrantes

Apenas uma pequena vogal separa o título da minha última publicação aqui no FB da que agora estão a ler. O “i” de imigrantes transformou-se em “e” de emigrantes. O que muda é apenas a forma, porque a coisa é a mesma. Quando falamos das pessoas de Angola, Cabo Verde, Guiné, China, Índia, Nepal, Brasil, Espanha, França, Itália ou Alemanha que residem em Portugal, falamos de imigrantes. Quando falamos dos portugueses que saem de Portugal para a África do Sul, Venezuela, EUA, Canadá, Angola, Brasil, França, Reino Unido ou Alemanha, falamos de emigrantes. As pessoas desses países dizem ao contrário, que são emigrantes os que de lá vêm para cá, e imigrantes os que vão de cá para lá. Tudo depende apenas do sítio de onde se olha. Assim, todas as pessoas que se movem de um país para outro para viver e/ou trabalhar são, simultaneamente, emigrantes e imigrantes.

Portugal foi desde sempre, e continua a ser, um país de emigração. A novidade é que agora somos também um país de imigração, porque passámos a oferecer condições de vida procuradas por pessoas de outros sítios. Não foi sempre assim. Sempre fomos, e continuamos a ir, para os quatro cantos do mundo à procura de melhor vida. E vamos porquê? Porque estamos insatisfeitos com as condições de vida que o nosso país nos oferece e temos a coragem de partir em busca de uma vida melhor. Tal e qual como fazem aqueles que de outros países nos procuram.

Particularmente intenso na nossa História recente foi o êxodo emigratório dos anos 50, 60 e início de 70. Face à miséria que grassava no nosso país, mais de dois milhões de portugueses foram para França, Alemanha, Inglaterra, EUA ou África, o que constituiu a maior manifestação de protesto dos portugueses contra a ditadura. Da minha família, ninguém emigrou, mas lembro-me bem dos amigos de rua que de um dia para o outro se despediam de todos nós, com imensa tristeza, porque os seus pais aqui trabalhavam sem sair da cepa torta, ao passo que, depois de uns anos a trabalhar duro no estrangeiro, regressavam em carro próprio, construíam a sua vivenda e falavam da vida diferente que tinham lá fora. Ah! Não esquecer: e enviavam remessas. Tal e qual como os nossos imigrantes.

A primeira vez que ouvi falar da importância das remessas dos emigrantes foi no Liceu Passos Manuel, quando estudava no que é hoje o 7º ou 8º ano de escolaridade. Foi um professor de geografia que, em tom de denúncia, explicou à turma que o dinheiro gasto na guerra era dinheiro que vinha dos nossos emigrantes, na forma de apoios aos familiares que ficavam (que o despendiam em consumo que estimulava a economia e cujos impostos alimentavam as finanças nacionais) ou de depósitos bancários. O regime metia os portugueses na miséria (e na guerra) e depois vivia à conta das suas remessas. Era assim.

Em pequeno admirava os emigrantes pela coragem que tinham de partir à aventura, à procura de uma vida boa, enfrentando a saudade e também a discriminação, o risco e por vezes a humilhação. Depois passei a admirá-los ainda mais pelo contributo que continuavam a dar ao seu país e às famílias que cá deixavam. Agora reconheço-lhes um outro grande contributo: o terem mostrado aos seus patrícios que para lá do país fechado e “orgulhosamente só” existiam sociedades mais justas e modernas. Isso foi determinante para alertar consciências e motivar a insatisfação que é mãe da mudança e do progresso.

Além disso, quando viajamos pelo mundo, encontramos sempre um português que nos procura para matar a saudade a falar da sua terra, e para nos apoiar com generosidade. Por tudo isso, obrigado emigrantes, vós que sois os imigrantes dos outros.

publicado por cafe-vila-franca às 12:02

Dezembro 19 2020

Desde março deste ano tenho podido, felizmente, manter a minha atividade profissional entre a casa e a universidade onde investigo e leciono. Quando lá vou, encontro-me com muito menos gente do que antes, mas há um grupo que continua a marcar presença diária: as senhoras da limpeza. São todas imigrantes de África e retribuem-me os simples bons dias e boas tardes nos corredores com sorrisos tímidos e com um cuidado impecável na limpeza do gabinete, dos corredores, dos equipamentos.

O ISCTE é, em tempos de pandemia, um dos lugares mais seguros que conheço. No ISCTE cheira a limpeza, os equipamentos que nos permitem manter comportamentos responsáveis estão disponíveis, a sinalética não nos permite esquecimentos quanto aos nossos deveres para nos protegermos a nós e aos outros. Mas na linha desta frente de combate ao vírus estão as senhoras da limpeza, que não podem ficar em casa, que vêm no comboio e que, expondo-se por nós, tornam o nosso espaço confortável e limpo.

Quando vou ao refeitório encontro-me com outras diligentes trabalhadoras imigradas, neste caso, do Brasil. Atendem com simpatia centenas de pessoas por dia, vigiando para que todas as regras sanitárias sejam mantidas por todos. É por isso que eu posso encontrar lá alimento. E quando as vejo, lembro-me das brasileiras a quem eu e a Fátima abrimos as portas de casa, como empregadas de limpeza doméstica. Pessoas da máxima confiança, competentes e diligentes. A elas devo a conservação da ordem na habitação em que me refugio para descansar e trabalhar.

De vez em quando lá tenho de fazer obras e, como não herdei do meu pai a habilidade para esses labores, contrato profissionais, aos quais também confio as chaves. Geralmente, são portugueses que conheço de longa data. Mas também já me socorri de ucranianos e já me espantei com a sua versatilidade e qualidade do trabalho, que impede que a chuva me entre em casa, permite que a água corra nas torneiras, e que os interruptores acendam e apaguem as luzes quando quero.

E, por falar da casa, como poderia eu esquecer o Sr. Arnold, um angolano que serviu o meu sogro em toda a obra que reabilitou o prédio antigo que se transformou na minha moradia atual. Moradia essa em que o meu grande e saudoso amigo José Manuel Teles “cigano” (que, entre outras coisas, me introduziu na magia de Sevilha e da sua Real Maestranza de Caballeria) colocou parquet, soalhos, tapetes e alcatifas.

Sem estas africanas e brasileiras, sem estes angolanos e ucranianos, e sem o José Manuel Teles, como teria sido a minha vida? Muito mais cinzenta e difícil. Bem pior, seguramente. Por isso, por me tornarem a vida mais fácil, segura, confortável e alegre, muito obrigado a todos.

publicado por cafe-vila-franca às 12:00

Dezembro 02 2020

Há mais de 40 anos dois lemas marcaram a minha vida, em diferentes períodos da juventude (nessa altura, aos 17 anos, era-se um jovem adulto). Um marcadamente ideológico, e outro com uma forte marca da fé. “Ousar lutar, ousar vencer” era um, e “a sorte protege os audazes”, o outro.

Um de cada vez, cada um dos dois representava não apenas um conjunto de valores, mas principalmente um quadro de pertença institucional que tomavam conta da vida toda.

Ao longo da vida fui atravessando situações em que me cruzei com muitos outros lemas e com muitos outros contextos sociais que os construíram. Fui dependendo cada vez menos desses dois lemas e multiplicando as pertenças institucionais. Os dois lemas perderam espaço, mas ficaram para sempre, embora quase sempre com outros sentidos, remetendo para outros objetivos, orientando outros passos. Tal como ficaram alguns dos que vieram depois. Mas nenhum passou a ser, digamos, totalitário, ou sequer dominante. Posso mesmo dizer que passei a desconfiar de quaisquer lemas de vida, se isso significar ficar amarrado e de olhos vedados.

A multiplicação das dependências torna-nos independentes. A independência e a autodeterminação não operam num vazio. Operam a partir das redes de relação, das pertenças, das experiências e das referências que incorporamos num padrão de personalidade próprio. Multiplicando-as, pode uma pessoa transformar-se, como diria Firmino da Costa, num depredador que, umas vezes mais conduzido pela razão, outras mais pelas emoções, e sempre com base em combinações das duas fontes de escolha, elege para cada fim em particular as peças específicas a pilhar no infinito tesouro da pluralidade cultural.

Porém, as escolhas não oferecem um número infinito de opções. Porque, como escreveu Bourdieu, elas são condicionadas por disposições duráveis que as orientam. São essas disposições que levam a que se escolha a ousadia em relação, por exemplo, à cobardia. Quem ousa vencer, pode vencer. A cobardia pode, combinada com a traição e a vileza, conferir vitórias efémeras, mas não mais do que isso, porque a derrota moral é o seu destino. A cobardia é a vergonha. A ousadia não é temeridade, é saber viver com os medos e, apesar deles, seguir em frente, fazendo o que tem de ser feito. A ousadia faz temer os inimigos, e isso aproxima-nos do sucesso, como se de uma sorte se tratasse. O sucesso não se afere só pelo trabalho, pelo dinheiro e pelo amor. Ser independente e audaz é, em si mesmo, sinónimo de ser bem-sucedido, sem mais recompensa. Pelo menos aos nossos próprios olhos. Significa que vencemos o medo e fizemos o que devíamos.

publicado por cafe-vila-franca às 00:06

Novembro 12 2020

Publiquei ontem, dia de São Martinho, uma carta redigida por Garcia Pereira em que ele, com dados e nomes concretos e não com base em insinuações vagas, desmascara o Chega e se pronuncia sobre alguns dos seus dirigentes. Os comentários em relação ao texto foram de três tipos. O primeiro visa descredibilizar Garcia Pereira, atacando o seu passado. Como não tenho nenhuma particular razão para o defender, direi apenas que acho curioso que quem fez esse tipo de comentários nunca tenha desmentido substantivamente os seus argumentos. Assim, acabam por lhe dar razão quanto aos factos, o que interessa.

Interessa? Sim, a alguns. Para outros, na lógica trumpista, a realidade é o que lhes convier e, perante evidências, limitam-se a vociferar elogios a André Ventura, seja ele e os seus amigos quem forem, e façam o que fizerem. São comentários simplesmente estúpidos.

O terceiro é o que mais me interessa: o daqueles que, por um lado, timidamente se demarcam do Chega, mas, por outro lado, só falam da geringonça e dos extremistas de esquerda, que equiparam aos de direita, proclamando o direito de ambos à existência e a ocupar o poder. É neste argumento, utilizado principalmente por pessoas ligadas ao PSD (não sei se também alguém ao CDS), que me quero centrar.

Os que o utilizam parecem estar a aplacar a consciência e a justificar o injustificável: que a direita civilizada (ainda há tão pouco tempo David Justino tinha falado da coragem que é hoje necessária para se ser moderado) tenha estendido a mão à direita xenófoba e trauliteira, para chegar ao poder nos Açores. Vamos falar direito!

Em primeiro lugar, este argumento, tal como o primeiro, peca na lógica, pois foge a pronunciar-se sobre os factos denunciados e desvia a atenção para outro plano, o da legitimidade da aliança entre o PSD, o CDS, o PPM, a Iniciativa Liberal e o Chega nos Açores. Portanto, aceita como válidas as denúncias, mas não o diz.

Em segundo lugar, peca pela moral da história. Se eventualmente o PS tivesse cometido um erro por se aliar ao PCP, ao BE e aos verdes, e agora (isso sim, é muito mau) ao PAN, isso nunca justificaria que se cometesse um erro idêntico do outro lado do espectro político. Sendo assim, presumo que os que usaram esse argumento acham bem a aliança com o Chega. Mas estão enganados (ou, se não estão, pior).

Em terceiro lugar, e mais importante, peca na substância. O Chega e o PAN não são o PCP, nem sequer o BE, partido do qual ainda recentemente fui vítima de perseguição, ao melhor estilo ditatorial. Mas isso não me tolda a visão nem alimenta o ódio. Na verdade, o PCP e o BE (principalmente este) têm no seu Programa disposições inaceitáveis para quem ama a liberdade e a democracia. Mas o Chega (falemos agora do que está em causa neste post), não tendo coisas dessas no Programa, baseia a sua prática em propostas atentatórias não apenas da liberdade e da democracia, mas também da própria dignidade humana. O PCP e o BE têm nas suas raízes históricas ideologias que deram origem a grandes atrocidades e crimes contra a Humanidade, mas eles próprios adotaram outro caminho, ao passo que o Chega parece propor o regresso às ignomínias que inspiram a sua ideologia. O PCP e o BE aceitam participar no sistema democrático que constitui a base de um consenso muito alargado nas nossas sociedades e um valor sólido das nossas culturas, enquanto o Chega se propõe destruir esse sistema e essas culturas (nisso é alma gémea do PAN, e o PS é tão culpado como o PSD e o CDS). Não são, pois, partidos comparáveis. O PCP e o BE não serão os paladinos da democracia liberal, mas aceitam-na e convivem com elas há décadas. O Chega não.

O PCP e o BE não constituem uma ameaça para as democracias ocidentais. Pelo contrário, equilibram o poder do capital e das megaempresas a favor do trabalho (na realidade, na minha apreciação, quem o faz é o PCP, dedicando-se os “betinhos de esquerda” do BE a “causas fraturantes”, algumas delas justas, mas outras, em particular o animalismo, de valor mais do que duvidoso). O populismo xenófobo que caracteriza o Chega e os congéneres no mundo moderno, sim, oferecem um perigo real e próximo. Qualquer cedência constitui um perigo real (e não mitológico, como acontece com os parceiros da geringonça). Qualquer descuido pode ser a morte da liberdade e da democracia.

Estes partidos nunca dizem ao que verdadeiramente vêm. Aparecem a cavalgar descontentamentos justos, e a promover outros não tanto, para alcançar o poder e daí desferir o seu golpe. Lembram-se da canção do Sérgio Godinho? Vêm com “pezinhos de lã”, que precedem as “botas cardadas”!

Sendo assim, é legítimo perguntar ao PSD e ao CDS se vale tudo, incluindo trazer o “alien” para dentro de casa, passo importante para ele cumprir o desígnio de se livrar deles, que são para o Chega meros “compagñons de route”, e alcançar o poder totalitário.

O Chega tem mesmo aliados! E isso é muito perigoso.

publicado por cafe-vila-franca às 23:27

Agosto 30 2020

Recentemente publiquei um conjunto de ideias, sem qualquer pretensiosismo e ao correr da pena, sobre o oportunismo. Prometi que voltaria para falar da permeabilidade das instituições aos oportunistas, colocando uma questão: são todas elas igualmente penetradas pelos oportunistas, ou algumas são as suas favoritas, aquelas em que realmente se sentem em casa?

Na verdade, os oportunistas movimentam-se sobretudo em ambientes eu reúnam duas condições. A primeira é a relevância na definição de regras e na distribuição de recursos de tipos muito diferentes: económicos, sociais ou culturais. A segunda é a prevalência de culturas institucionais mais orientadas para a conservação do que para a inovação. Em particular atraem-nos as organizações burocráticas em que a rotina prevalece sobre a mudança e que possuem o poder de definir regras sobre como aceder a recursos. Sendo certo que as instituições muitas vezes começam como respostas inovadoras a problemas emergentes, com o tempo acabam regularmente por se arrastar na reprodução de procedimentos meramente administrativos. Mesmo quando os problemas que as originaram deixam de existir, os oportunistas aparecem nesta última fase, quando a ação predominante visa a gestão do “stock” de recursos e não a sua criação ou crescimento acelerado.

Em resumo, os oportunistas não estão nunca envolvidos nos processos de inovação, nem dos produtos nem dos processos, nem do lado dos criativos, ou sequer entre as forças de progresso de uma sociedade (independentemente do quadrante político em que se situem). Quando uma instituição não inova, mas copia e repete, é seguro que foi já tomada por uma burocracia de oportunistas.

Em ambientes institucionais pouco dinâmicos, mas que geram poucos recursos, é raro encontrá-los. Por exemplo, é muito incomum que se desgastem no associativismo popular, no qual é indispensável muita perseverança e paciência (qualidades de que os oportunistas estão sobrados), mas onde não são muitas as recompensas, para além da satisfação pelo serviço público prestado, valor completamente desinteressante para os oportunistas. O máximo que podem obter nas associações populares é protagonismo, que pode servir de trampolim para outros lugares (por exemplo, nas autarquias). Porém, nas associações, se lá estiverem, ficam por pouco tempo.

Os oportunistas dão-se bem em empresas instaladas numa posição dominante e pouco ameaçada no mercado. Nessas empresas não procuram os departamentos de pesquisa, inovação e marketing, mas as estruturas de organização da produção ou controlo financeiro. Chegam a lugares de relevo na hierarquia à custa da “graxa”, destacando-se como bufos, até que conseguem alcançar posições que lhes permitem bufar dos próprios chefes que engraxaram para ocupar os seus lugares. Esses chefes julgam que os têm na mão, mas enganam-se e quando reparam que foram vítimas do veneno que estimularam, estão acabados.

Já em empresas muito expostas à concorrência e em que não basta imitar e seguir as tendências do mercado, mas em que é preciso competir, inovar, criar, dão-se mal. Não têm nem a imaginação, nem a capacidade de aprender, nem a coragem de se expor ao erro, desbravando caminhos nunca antes percorridos. Porém, se uma empresa percorre esses caminhos, estarão na disposição de se sujeitar a carregar as bagagens na expectativa de que ela se instale numa zona de conforto, ponto em que conspirarão com outros oportunistas para excluir os pioneiros e ocupar os lugares de topo na organização.

Mas as empresas, embora gerem e distribuam muitos recursos, têm pouca capacidade de definir ou impor regras, embora sejam boas a influenciá-las. Nisso os oportunistas são especialistas, dada a particular inclinação para se insinuar e seduzir.

É assim que encontram nas organizações do Estado, aos diversos níveis, e nos Partidos Políticos, a “sua casa”. Em contextos não democráticos servem o ditador. Rodeiam-no, até. Os ditadores não gostam em geral de quem não se contente com o status quo, se inquiete ou interrogue demais. Por isso se rodeiam de oportunistas que são bons na aceitação acrítica das ordens e na sua execução sem rebuços, sejam elas quais forem, se essa for a forma para se manterem na crista da onda.

Quando se dão reviravoltas, com passagem de um ditador para outro ou da ditadura para a democracia, rapidamente se reconvertem, oferecendo os seus serviços ao novo regime com o mesmo cinzentismo com que serviram o anterior. Nas primeiras vagas protegem-se, escondem-se, deixam passar a bernarda tentando passar despercebidos, para depois, mais ou menos lentamente, deitarem a cabeça de fora e irem emaranhando pelas escadas do poder acima.

Escondidos nos momentos de turbulência, evitando polémicas que chamem a atenção sobre si antes de se encontrarem bem estribados, mesmo em regimes democráticos, prosperam. Sabem como ganhar eleições, enganando os incautos, que são a maioria. Seduzir é importante e os oportunistas sabem como fazê-lo (atenção, nem todos os sedutores são oportunistas). A capacidade de sedução é essencial para ganhar eleições. Para seduzir seguem a tática de Cortez, o conquistador espanhol que no século XVI destruiu o império Asteca somando os ódios dos povos subjugados aos astecas, os quais julgaram poder vingar-se aliando-se ao ocupante na crença de que ele os libertasse, como prometido. Entretanto, tornar-se-iam tão vítimas como os dirigentes astecas, que quando perceberam o logro em que tinham sido envolvidos, era tarde demais. Todos foram dizimados e uma nova ordem se instaurou. Também os incautos acreditam nas promessas dos oportunistas. E também na sua retórica contra as pessoas sérias e criativas: dizem que os sérios e criativos representam o perigo da desordem e do caos (eles são quase sempre pessoas inquietas), ao contrário deles próprios, que asseguram estabilidade. As pessoas geralmente têm medo de uma aventura fenomenal e excitante mas com fim incerto, agarrando-se a quem lhes promete segurança. Assim, os incautos, procurando a segurança, entregam-se nos braços oportunistas que tecerão a teia que os apanha desamparados como moscas desprevenidas.

(Aqui faço uma nota para lembrar que os regimes democráticos, como dizia Churchill, são os piores, à exceção de todos os outros, proporcionando aliás a única possibilidade de as pessoas sérias, em momentos de crise, ascenderem ao poder e encontrarem soluções para o bem coletivo, objetivo que nunca pode mobilizar os oportunistas, totalmente focados nas vantagens pessoais Não se faça qualquer leitura populista (oportunista) do que disse acima. A política não é má por definição nem os políticos são todos oportunistas. Pelo contrário, sem políticos sérios e criativos ainda hoje a humanidade habitaria as cavernas)

Assim ganham eleições e ocupam os aparelhos das instituições políticas como os partidos, os governos centrais e locais e os departamentos da administração pública. Nesses lugares distribuem os recursos entre si, dispensando apenas uma parte para alimentar a arraia miúda e mantê-la submissa – e até dependente de quem lhes dá a escola – e estabelecendo as regras que asseguram que o poder sempre lhes ficará nas mãos, pelo menos até que se esgote a fonte. Nesse caso, virão novamente pessoas sérias e criativas apontar alternativas e conduzir processos de mudança dessas instituições, o que farão até que se estabeleça um novo ponto de estabilidade e os oportunistas regressem aos aparelhos.

Assim, as instituições políticas oscilam entre breves períodos de abertura e inovação que se sucedem a crises, nos quais os oportunistas se eclipsam, e períodos mais longos de rotinas burocráticas, onde alcançam grande esplendor.

Passámos, portanto, sobre instituições pouco amigáveis dos oportunistas e por outras que oscilam entre períodos de turbulência e criatividade que os afastam, e longos períodos de estabilidade que são as suas preferidas, pois que nelas prosperam. Mas há outras que comportam em simultâneo as pessoas sérias e criativas e oportunistas. Mais precisamente, a convivência é a situação mais comum, com segregação de funções entre pessoas sérias e criativas e oportunistas. Por exemplo, nos partidos os oportunistas não estão nunca a escrever os programas ou a estudar o modo de fazer avançar o bem comum, tarefa para pessoas comprometidas com o coletivo. Estão a organizar listas de candidatos e a selecionar os que há que excluir (por exemplo, todos os que os topam) e distribuir lugares. Mas enquanto no primeiro tipo de organizações os oportunistas estão em escassa minoria nos cargos de direção, e no segundo estão geralmente em larga maioria, no terceiro tipo a divisão é estrutural. É o caso, entre outros, das Universidades.

As Universidades são as principais responsáveis pela produção da ciência e pela abertura de horizontes. Mas são antigas e conservadoras. Assim, comportam processos abertos de produção e comunicação científica, em contextos muito competitivos e exigentes. Na liderança dessas atividades estão professores e investigadores sérios e criativos. Esses estão na vanguarda do conhecimento e da inovação. Mas também comportam estruturas organizativas pesadas, em que prevalece o tráfico de influências e o paternalismo. Assim, professores e “investigadores” preguiçosos tendem a iludir as regras da transparência e a ocupar os cargos de direção em função dos favores prestados à cadeia de comando. Estes parasitam os primeiros, que mantêm o prestígio das instituições, de que os segundos muito bem sabem beneficiar.

Há ainda um outro ponto importante: a permuta de oportunistas entre instituições. Já falámos dos dirigentes associativos que procuram dar nas vistas fitando uma posição de poder político, nomeadamente no plano local. Outro fluxo relevante é o que se estabelece entre as Universidades e as instituições políticas, nomeadamente em duas situações: quando académicos sérios e criativos são chamados a ajudar a resolver diretamente (e não como é comum, através da produção de conhecimento) situações de crise, e quando dirigentes políticos oportunistas chamam académicos oportunistas para os partidos e para o aparelho de Estado, visando com isso ganhar credibilidade.

O fluxo mais importante, porém, é o que se estabelece entre as empresas e os sistemas políticos. Esse fluxo tem dois sentidos. Por um lado, as empresas nomeiam pessoal de confiança para influenciar (e decidir critérios de financiamento) o poder político ou mesmo para se transformarem em agentes políticos. Por outro lado, os agentes políticos oportunistas fazem de bom grado o seu percurso na política com a expectativa de vir a ser cooptados por empresas que lhes pagam muito acima dos seus reais méritos. Este é o fluxo mais perigoso e aquele a que temos de estar mais atentos, seja qual for o sentido, por ser o que mais negativamente pode afetar a democracia, a liberdade e a igualdade.

publicado por cafe-vila-franca às 10:11

No Café Vila Franca, como nos cafés da trilogia de Álvaro Guerra, os personagens descrevem, interpretam e debatem a pequena história quotidiana da sua terra e, com visão própria, o curso da grande história de todo o mundo.
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