Estava eu um dia destes a comer uma francesinha no Porto e revi, pela enésima vez, um anúncio na televisão. Todos o conhecem: um popular actor de cinema sai de uma loja com a sua compra, uma máquina de café, e cai-lhe em cima um piano, que o envia até São Pedro. Lá chegado reclama que não contava ter uma vida tão curta. São Pedro troca o prolongamento da vida do actor pela máquina de café. O actor volta ao local do acontecimento fatídico e, em vez de sair pela porta que o levaria a apanhar com o piano em cima, volta atrás e salva-se. Não sei porquê, olhei para o anúncio de forma diferente da habitual.
A mensagem explícita é clara e bem apanhada: o charme do piano como instrumento fatal, a popularidade do actor, o interesse de São Pedro pela máquina de café, tudo aponta para o valor que esta tem. Coisa divina.
Mas há um pormenor que traduz o sinal dos tempos, que a publicidade geralmente traduz com limpidez. Para que o actor sobrevivesse tanto podia ele tomar a decisão de voltar atrás (a mais improvável e inexplicada), como poderia a queda do piano ter sido evitada (São Pedro tudo faria pela máquina). Mas esta última opção remeteria para factores de contexto, isto é, para o modo como a nossa vida é afectada pelo comportamento dos outros. Mas a publicidade sublinha que, se o actor se salvou, foi porque tomou uma decisão própria. A mão invisível de São Pedro limita-se a articulá-la com as consequências. A mensagem subliminar parece-me óbvia: o que acontece às pessoas depende apenas delas e das sua decisões. TRata-se da exaltação do individualismo que caracteriza uma certa cultura tão presente nos nossos dias. O anúncio é, pois, mais do que um mero incentivo ao consumo daquelas máquinas. Trata-se de uma metáfora de estruturas culturais que são tudo menos neutras e banais. Não é apenas a marca da máquina quem ganha com esta propaganda. É toda uma leitura do mundo.