O governo da peculiar fação do PPD/PSD agora no poder, coligado com o sempre populista PP, propôs a refundação do acordo com a troika. Recuou face às críticas e alinhou o tiro pela mira do movimento da direita europeia que pretende refundar o que por cá se tem vindo a chamar "estado social". Multiplicaram-se os comentários e as denúncias da ambiguidade e errância do governo: afinal propõe-se a refundação do acordo ou do estado social? Questões formais à parte, vou direto ao assunto. Eu concordo com uma refundação. Também concordo com os que não concordam porque ainda não conhecem as propostas de conteúdo concreto da refundação. E concordo com os que não conhecem os termos mas antecipam as agendas de reforma e por isso não concordam. Estranho? Já me explico.
A meu ver a distinção entre a refundação do estado social e do acordo com a troika é falsa. Se o acordo com a troika se mantém, o estado social é refundado, por via do acordo. Por outro lado, para haver acordo, é preciso aceitar um determinado tipo de "refundação" do estado social. Portanto, havendo acordo com a troika, refundado ou não, haverá sempre uma forte degradação (que alguns chamam refundação) das políticas sociais. A situação atual é campo fértil para emergirem propostas desencontradas, opostas mesmo, para o futuro do estado providência.
Vejamos a versão anedótica da senhora Jonet, primeira figura da caridadezinha que tem vindo a ser apresentado por muitos, incluindo o Presidente da República (lembram-se da ideia de dar aos pobres os restos da comida dos restaurantes?), como uma solução para a pobreza que se aprofunda com a crise e com as políticas que supostamente a deveriam combater. A caridade como sistema de promoção do bem-estar é o grau zero do conservadorismo político e moral: não resolve os problemas, estigmatiza quem recebe, apenas serve para que os ricos marquem as distâncias. Uns dão as sobras apaziguando a consciência, e os outros, os pobres, devem ficar agradecidos e submissos pela benesse das dádivas. Os restantes, a grande maioria, nem muito pobres nem ricos, têm de meter no saco a expectativa de que o estudo e o trabalho permitam o acesso a condições de vida dignas e aceitar o recuo da qualidade de vida até aos tempos em que comer carne de bovino era um luxo ao alcance de muito poucos. Como diria Fernando Ulrich, banqueiro e beneficiário líquido da crise e um "boss" da elite no poder que segrega as caridosas "Jonets", os portugueses têm de "aguentar"!
Um pouco mais sofisticada é a proposta do "tio" Pinto Balsemão: o Presidente da República acorda (depois de uma estranha hibernação de verão e outono) e, com a legitimidade que possui, obriga o PS a negociar a refundação, ao passo que o governo cria um Conselho Social. Pode parecer uma proposta nova. Mas tresanda a reedição do Conselho dos Assuntos Sociais criado por Salazar, a que o mesquinho ditador pessoalmente presidia e a que todos, por superior interesse da nação, teriam de se submeter. O retomar da expressão marcelista de "estado social" para designar o que costumamos chamar "estado-providência" ou "estado de bem estar", é um detalhe simbólico desta orientação "refundadora". Como sabemos havia o Conselho dos Assuntos Sociais, mas não existia o estado-providência. As corporações tratavam (mal) de alguns, as famílias cuidavam, como podiam, os outros. A pobreza era a norma, mas a vida curta encurtava o sofrimento.
O conservadorismo ditatorial do fascismo português nunca foi, porém, nem podia ser, simpático em relação ao capitalismo moderno. A desconfiança era, de resto, mútua. Acontece que o novo capitalismo global é ainda mais refratário a esse modelo político. A liberdade é um valor essencial para justificar a libertinagem nos mercados. A ditadura não é já exercida de forma explícita pelo aparelho político do estado. É mais eficaz o "pensamento único" emanado pelos agentes dos mercados e a desvitalização das consciências produzida pela cultura de massas. Os mercados ditam: fora o estado, fora as despesas sociais, abram alas à passagem da economia de casino.
É pelas ideias do "pensamento único" que o governo alinha as suas práticas e é em nome delas que a Sra. Merkel, mais o Banco Central Europeu e todas as instituições financeiras nos remetem para a recessão da economia, o desperdício dos recursos humanos, a destruição dos direitos e a austeridade que está a fazer com que a qualidade e o nível de vida dos portugueses (e dos europeus, à exceção dos nórdicos) tenha entrado num plano descendente cujo fundo se encontra algures num ponto ainda desconhecido do passado.
Primeiro procuram fazer-nos esquecer que a crise que vivemos resultou precisamente do falhanço das teorias e das políticas em que se baseia esse pensamento: a desregulação da economia, a explosão das desigualdades, a destruição das relações industriais, o recuo e inação do estado. Não foi o bem-estar das pessoas, nem o trabalho com direitos, nem as políticas sociais que criaram a crise. Foi pelo contrário a especulação financeira e um modelo de crescimento assente nessa especulação, foi a orientação das empresas para o curto prazo dos valores em bolsa, foram as desigualdades e o desiquilíbrio criado na distribuição dos recursos resultantes do crescimento da produtividade, beneficiando do recuo do consenso e da negociação coletiva como modo de regulação do trabalho; foram os ataques aos valores do trabalho e aos direitos a ele associados; foi a subordinação dos setores produtivos da economia aos setores especulativos; foi a inversão de hierarquias entre os interesses da maioria das pessoas e os interesses da pequena minoria dos super-ricos; foi a consequente "bolha especulativa" criada para sustentar ao mesmo tempo a adesão das populações ao modelo económico dominante e a criação de condições extraordinárias para o crescimento, em bases instáveis, do setor financeiro. Foi a expansão das oportunidades de negócio resultantes das privatizações e das encomendas a privados de serviços antes prestados pela administração pública. Foi a colonização do estado e dos partidos por parte das grandes empresas ou, no mínimo, do forte condicionamento da ação política por parte de interesses económicos corruptores e chantagistas. Foi a preversão dos mercados financeiros a nível mundial. Foi o ataque às políticas económicas e sociais do estado e a perda da representação dos interesses comuns na esfera da economia. A proposta de refundação do estado social do governo só pode ser, então, o reforço da receita que matou com a cura o mal de sustentabilidade a prazo de que sofriam as políticas sociais.
Depois há os que se opõem a qualquer "refundação". Os que se opõem, aliás, a tudo o que mexa. Envelhecimento, economia global, organizações em rede, transformações na família, nada disso importa: no plano tático, fixaram um patamar de "conquistas dos trabalhadores" como referencial para o protesto, desconfiando de qualquer melhoria (vai-se parte do capital de queixa) e mantendo o nicho do mercado contestatário quando, como agora acontece, tudo piora. O problema é que não têm uma única alternativa para o futuro. No plano ideológico recusam o próprio estado-providência, porque ele não existe sem mercado. Mas no plano estratégico, como programa político, não têm nada a não ser a promessa vaga de "amanhãs que cantam".
Uma quarta via a considerar, até pela forte possibilidade de chegar em breve ao governo, é a do centro, mais à esquerda ou mais à direita. Encurralado entre a pressão democrática das populações que rejeitam perdas na qualidade da sociedade e das políticas sociais, criando assim problemas de legitimidade aos programas de reforma exigidos pelo mercado, por um lado, e, por outro lado, as exigências de liberdade de ação desregulada das empresas que ao mesmo tempo reivindicam a privatização (mercadorização) das políticas que podem representar alguma atividade lucrativa, a desregulação da economia, o "dumping" nas condições de trabalho, o "centro" tenta suavizar o ritmo de transferência de responsabilidades do estado para o setor privado e para as famílias, assegurando a aparência de moderação política e de algum equilíbrio na decisão a favor dos interesses contraditórios em presença. O problema é que em contexto de crise como a que se vive, com as dificuldades acrescidas de financiamento do estado-providência tradicional, o centro encontra-se desprovido da força política necessária para encontrar saídas. Falta-lhe o apoio dos movimentos de trabalhadores que ajudaram a enfraquecer e está refém das mega empresas nacionais e mundiais. Não tem por isso nem força nem vontade para alterar os regimes tributários e as políticas salariais de forma a conservar as estruturas e medidas fundamentais do estado providência com base numa repartição mais justa dos recursos. Estes reformistas vêm-se assim compelidos a acelerar a evolução para um modelo dualista de proteção social: por um lado, mínimos reduzidos para os mais pobres, proteção de pior qualidade para os menos qualificados, trabalho em piores condições para os segmentos menos competitivos, escolas públicas degradas para os jovens filhos de famílias de trabalhadores executantes dos serviços e dos operários, serviços públicos de saúde a funcionar de forma deficiente. Por outro lado, sistemas privados e corporativos de proteção generosa para os técnicos e administradores, salários elevados e grande poder de aquisição de bons serviços de saúde e educação no setor privado para os mesmos, que ainda monopolizam as carreiras profissionais gratificantes. Dualização na proteção social, na saúde e na educação que beneficia os mais ricos e empobrece as classes médias e populares. Osreformistas do "centrão", que foram os obreiros do estado-providência, deixaram-se capturar pelos interesses dos mercados, ficaram sem ideias para sustentar num novo contexto económico o sistema político e institucional que ajudaram a criar com o apoio dos movimentos operários, e tornam-se nos coveiros da sua própria (excelente) criação, sem o entusiasmo dos radicais de direita, mas com resultados muito semelhantes.
Usam a desculpa da globalização, exatamente do mesmo modo que ela é usada para os maneatar. Dizem: se insistimos em políticas para a igualdade de oportunidades e de regulação da economia, o capital foge para onde lhe oferecerem melhores condições. Torna-se, do seu ponto de vista, inevitável ceder às pressões, tanto mais quanto uma parte dos agentes individuais acabam por beneficiar pessoalmente com a promiscuidade entre a política e os negócios que está a minar a confiança dos cidadãos no sistema. Por tudo isto, aceitarão, de forma mais ou menos retocada, a "refundação" proposta pela direita ultra-liberal.
Neste quadro, é possível encontrar uma solução que permita manter um sistema político de bem-estar compatível com o mercado capitalista global? Esta é, de há anos a esta parte, a questão central para as políticas públicas. Como podemos "refundar" o estado providência e resolver os problemas do seu financiamento mantendo a economia competitiva, condição desse financiamento? Sigamos uma pista: mudando o âmbito do estado e invertamos os termos da relação entre o desempenho económico enquanto "condição" das políticas sociais, para políticas sociais enquanto "investimento" indispensável ao crecimento da economia e ao desenvolvimento sustentável.
O Estado providência desenvolveu-se de forma particularmente benévola na Europa. A sua base é o estado-nação e, apesar das características comuns que permitem falar de um modelo social europeu - nomeadamente a qualidade das políticas sociais e a forte presença do estado na economia, quer como agente regulador, quer como prestador de serviços - a sua construção institucional ocorreu em diferentes momentos históricos, o que ajuda a explicar as especificidades dos modelos e do desenho das instituições e das políticas nos diversos países. Por isso, tem-se argumentado, é impossível ir mais longe do que o que permite o "método aberto de coordenação" na convergência social. Isso, aliado aos níveis de desenvolvimento económico e ao perfil produtivo típico de cada país, cria condições de vida e trabalho muito diferentes numa perspetiva europeia. Curiosamente, o que não se diz é que eram também muito diferentes os mercados e as moedas, o que não impediu a construção de um mercado único e do Euro.
O contexto de crise estrutural que se vive tornou mais problemática a sustentação dos "velhos" sistemas de políticas públicas e mais premente a sua "refundação". De resto a crise ameaça prolongar-se por muitos anos e aprofundar-se até que a qualidade de vida da esmagadora maioria dos cidadãos europeus, com os dos países periféricos em primeiro lugar, se degrade dramaticametne (com exceção dos países nórdicos), frustrando expectativas de progresso e provocando recuos para níveis que se julgavam sem regresso. A ideia da superioridade da civilização europeia do pós-guerra em termos de qualidade social é posta em causa. Ua sociedade que se quer justa e democrática não pode conviver bem com tal degradação das condições de vida das pessoas. O contexto da crise financeira do estado é o argumento da direita para atacar a sua presença na economia e as políticas sociais. A orientação para uma "austeridade" severa e prolongada releva deste argumento. Passa-se a ideia de que sem isso não se reequilibram as economias, ameaça-se com o caos. E assim, à custa das condições de vida dos cidadãos, vai-se benefíciando o sistema financeiro e o grande capital.
Cada nação tem vindo a tratar de responder sozinha aos seus problemas, sem solidariedade europeia, apesar de se manterem inquestionadas as instituições financeiras - as primeiras responsáveis pela crise - e o mercado único. Quando chegam apoios, chegam enroupados com programas que, como a experiência vem mostrando, em vez de resolver os problemas, aprofundam a crise e a depressão, beneficiando apenas os principais culpados.
Neste quadro, com opções escassas e de passagem estreita, há que refundar o estado providência para retomar o crescimento e assegurar o bem estar. Essa refundação passa por dois desideratos difíceis, mas indispensáveis. O primeiro, condição do outro, é construir um estado europeu, federal. Essa é uma condição para: 1) colocar no seu lugar a maneira europeia de combinar o valor da liberdade - não apenas política, mas também para o funcionamento do mercado - com o da igualdade e da equidade, abrangendo todos os cidadãos; 2) regular os agentes económicos no quadro do maior mercado mundial e equilibrar interesses nacionais e sociais; 3) jogar um papel diferente no sistema mundial, arrepiando o caminho de promover o dumping social interno para equiparar o custo do trabalho europeu - ou de algumas das suas regiões - ao das economias em que prevalecem relações laborais desreguladas e sem direitos dos trabalhores, e apresentando uma alternativa mundial à desregulação, que possa ser reivindicada pelos cidadãos de todos os continentes.
O segundo tem a ver com o princípio fundador das políticas sociais. Trata-se de construir políticas sociais europeias (de segurança e proteçãqo social, de emprego, de luta contra a pobreza, de educação, de saúde) marcadas por duas características principais: 1) a ativação dos cidadãos - cruzando direitos com deveres - e das instituições - promovendo a abertura no acesso aos recursos; 2) a consideração das políticas sociais como investimento económico, e não como mero custo. Não nos podemos dar ao luxo de desperdiçar recursos humanos, o principal fator competitivo da Europa, nem de pagar às pessoas para estarem paradas, em vez de promover a sua participação ativa na economia e na sociedade.
Numa Europa em que as políticas comuns se resumem, quase exclusivamente, à eficiência dos mercados, prevalecem as distinções entre os estados. Os de orientação mais liberal têm como princípio orientador a prevalência da responsabilidade individual; o modelo continental assenta na relação entre as políticas de proteção e o estatuto profissional; o modelo escandinavo assenta no princípio da solidariedade alargada. A atual crise precisa que a Europa, enquanto "player" mundial politicamente integrado, se mova para a frente e afirme o que de melhor a sua história produziu no contexto mundial. Aí está a principal "refundação" a operar: tornar europeias, federalistas, as fundações das políticas de bem estar. E também os padrões de trabalho e de vida resultantes de uma distribuição equitativa das oportunidades.
Refundar o estado providência é, portanto, promover uma nova geração de políticas sociais ativas, que promovam o investimento no capital humano e que afirmem a Europa como o espaço de referência para as pessoas que em todo o mundo anseiam pela democracia, pela qualidade de vida e por direitos sociais.