Fevereiro 23 2020

O caso João Moura, um pouco mais a fundo

Luís Capucha

O mundo taurino e os seus inimigos têm andado em sobressalto e grande agitação porque João Moura, cavaleiro tauromáquico, está indiciado por crimes de mau trato animal. Foram divulgadas imagens capazes de destroçar qualquer coração sensível, produzidas pela GNR, sobre o estado em que se encontravam 18 cães galgos de que era proprietário. Não me espanta se mais imagens aparecerem de outros animais, eventualmente até cavalos, em estado idêntico, aumentando assim o vozerio.

Estes acontecimentos e as imagens que os ilustram têm sido amplamente comentados, na comunicação social e nas redes sociais. Emergem três argumentos genéricos. Um é amplamente partilhado e condena a prática de maus tratos animais, e em geral resulta na manifestação de vontade de uma condenação severa. Outro, vindo do lado dos aficionados à festa de toiros, separa a condenação do cidadão João Moura da sua condição de cavaleiro tauromáquico, afirmando que uma coisa (o mau trato animal) não tem nada a ver com a outra (a tauromaquia). Este argumento faz-se acompanhar com frequência de uma condenação reforçada por ser João Moura alguém que deveria dar o exemplo. O terceiro vem das associações animalistas, e tendem a generalizar o comportamento individual como se ele decorresse da própria natureza da tauromaquia.

Pessoalmente junto-me a todos os que condenam os maus tratos animais e, nesse sentido, não posso deixar de lastimar o que os meus olhos viram. Mas não me fico por aí. Interrogo-me sobre as circunstâncias em que estas coisas acontecem. João Moura – de cujo estilo artístico nunca fui adepto – é uma figura mundial do toureio. Revolucionou a arte de tourear a cavalo e fez história. Como artista foi daqueles a quem “entregaram as chaves do Banco de Espanha”, tal foi o seu sucesso artístico e consequente remuneração “astronómica” que conquistou, pelo seu mérito. Como chegou à situação de não conseguir assegurar um bom tratamento dos cães, ele que é também conhecido pelo gosto das corridas de galgos e do sistema de apostas que as rodeiam? Aparentemente, aconteceu-lhe o mesmo que a tantos artistas e desportistas que ganham fortunas e acabam na penúria. Fácil é condenar-lhes o suposto caráter fraco e a moral decadente. Mas o que é justo é tentar compreender os mecanismos que levam a situações como esta, em que os “astros” do passado se tornam incapazes de lidar com os diversos efeitos da sua própria glória. Mais do que culpados, são vítimas e merecem, mais do que de condenações, de ajuda e solidariedade (não confundir com perdão pelos crimes eventualmente cometidos). De resto, a própria Justiça tende a atender circunstâncias deste tipo quando julga os casos que lhe compete jugar, e faço votos de que assim seja neste caso. Fazer justiça não é só olhar aos factos objetivos, mas também às circunstâncias em que ocorrem.

Chagamos então à questão da Justiça. Concordo também com os que dizem que se deve deixar a Justiça fazer o seu trabalho. Mas, se assim é, porque é que de repente tanta gente se sente na obrigação de vir julgar o cidadão João Moura na praça pública? Na verdade, encontro muitos paralelismos entre este tipo de comportamento por parte de muitos aficionados e fenómenos coletivos que seguem os padrões do exorcismo e da queima das bruxas. Atuam como se se sentissem traídos por um dos seus ídolos, chegando cada um uma acha à fogueira que os queima quando estão na mó de baixo. Como se transportassem consigo um sentimento de culpa cuja expiação passa pela condenação do ídolo caído em desgraça, mesmo que ainda não declarado culpado pela justiça que afirmam dever atuar livremente. Por favor, assumam a vossa condição de aficionados sem complexos. Deixem funcionar a justiça e façam o que puderem para ajudar (insisto, para não gerar críticas fáceis, sem desculpar os seus atos) o cidadão.

Inaceitáveis são as tentativas de colagem de um ato praticado por um cidadão que por acaso é profissional do toureio, à tauromaquia no seu conjunto. Neste caso é também seguido um padrão de comportamento bem conhecido e particularmente perigoso. Qual é a diferença entre dizer que “um toureiro maltratou animais, logo todos os toureiros maltratam animais”, e dizer “um preto – ou um muçulmano – cometeu um crime, logo todos os pretos – ou muçulmanos – são potenciais criminosos”, ou “um cigano agrediu uma professora, logo todos os ciganos são agressores de professoras”? Estas generalizações abusivas são sobejamente conhecidas como estratégia usada pelo populismo para difundir ideais racistas e fascistas e ganhar adeptos por via do medo ao “outro”, aquele que de algum modo é diferente de um “nós” que se pretende construir e alargar. Qual a diferença entre esta estratégia e a que utilizam as organizações animalistas para atacar a tauromaquia e, mais do que isso, impor na sociedade a sua maneira de olhar o mundo e estimular a intolerância e o maniqueísmo? Nenhuma. Assim, a principal conclusão que retiro deste caso remete para a indistinção de fundo entre os objetivos e os métodos dos grupos neonazis e racistas e dos grupos animalistas.

Aliás, misturando e mistificando toda a realidade, estas associações querem matar dois coelhos de uma cajadada: atacar a tauromaquia e também promover a proibição das corridas de galgos, outra das suas reivindicações promocionais.

Duas notas ainda para concluir. Primeiro, confesso que não posso deixar de confessar o meu desconforto perante a proporção que esta situação ganhou. Todos os dias se cometem crimes e maus tratos contra pessoas que não geram a onda de indignação que este caso está a gerar. Reconheço como certo o princípio de que um crime não desculpa outro (outro argumento fácil que dispenso os críticos de esgrimir). Mas também recuso o relativismo, que aponta para que não se estabeleçam hierarquias na maneira como devemos olhar para diferentes crimes. As pessoas não são iguais aos animais, e os crimes contra pessoas não podem ser vistos no mesmo plano que se vêm os crimes contra os animais. Por isso, de resto, é que o quadro penal cria penas diferentes para uns e outros. Dizer o que digo é dizer que os direitos humanos são absolutos, ao contrário do que pretende o relativismo cultural que tende a atribuir o mesmo valor a todas as coisas, o que acaba sempre por se transformar na atribuição de um valor superior à causa particular em que se milita.

A segunda nota resulta de uma teimosa desconfiança, possivelmente falsa e conspirativa (como se sabe, não há bruxas), de que existe uma relação entre a dimensão mediáticas ganha por este caso e dois conjuntos de sondagens recentes. Refiro-me, por um lado, à sondagem publicada há um par de semanas que mostra uma adesão de massas à tauromaquia e, pelo contrário, o caráter ultra minoritário do anti taurinismo. Por outro lado, à queda acentuada do PS nas intenções de votos dos portugueses, que algo, mesmo que pouco, resultará da posição sectária da liderança do PS em relação aos toiros, demonstrada na subida do IVA nas touradas. Alguma coisa tinham de fazer os anti taurinos e o PS, mais as suas máquinas de propaganda, para se “vingar” da tauromaquia e inverter as tendências. O seu azar é que a cultura de um povo não se muda assim tão facilmente.

publicado por cafe-vila-franca às 13:08

Fevereiro 23 2020

Escrevi hoje no Público online as seguintes palavras, que quero deixar registadas com direitos de autoria, porque nunca vi enunciada esta ideia: “se postularmos que os homens e os outros animais – ainda que apenas os sencientes – são iguais nos seus direitos, não estaremos a defender a civilização. Antes pelo contrário, estaremos a promover a selvajaria. Os animais, mesmo os neurologicamente mais dotados, não podem controlar por si próprios e de sua livre vontade os instintos que comandam o seu comportamento. Ora, é precisamente de controlo dos instintos que se fala quando se fala de civilização. Não se podendo elevar os animais não humanos a esse nível que apenas a cultura e a razão permitem, só pode haver igualdade baixando os homens e as mulheres à sua condição animal pura e dura, isto é, a um estado de selvajaria absurdo, mas a que alguns nos querem conduzir”.

Gostaria de acrescentar agora que uso o termo civilização no sentido que Norbert Elias deu ao conceito de processo civilizacional.

Simplificando os meus argumentos, só há duas maneiras lógicas de conseguir a igualdade entre homens e animais: ou elevando a condição animal ao estatuto de humanidade, ou fazendo descer a humanidade ao estado senciente dos animais. O encontro a meio caminho não existe.

A primeira maneira de promover essa igualdade, elevar os animais à condição humana, só é possível na imaginação e no plano simbólico. Nas fábulas e em metáforas nas quais os animais são humanizados, como acontece, por exemplo, na chamada “cultura Disney”. O problema é que há pessoas que tomam a imaginação e o símbolo pela realidade. Por isso o dano da humanização dos animais não é menor do que a animalização humana: perdem-se as referências e as fronteiras, dilui-se o sentido humanista da vida e torna-se possível toda a barbárie.

A segunda maneira, como disse acima, leva à selvajaria e ao fim da civilização. Não é uma impossibilidade material. O homem chega por vezes a limites que o animalizam, fazendo recuar a civilização. O nosso quotidiano está cheio de exemplos desse fenómeno, de que a História fornece inúmeros exemplos, alguns dos quais, como o do Partido Nazi, convivem com a defesa da proteção dos animais. Em qualquer dos casos, o perigo do animalismo é evidente e o seu combate é um combate pela civilização.

publicado por cafe-vila-franca às 13:08

No Café Vila Franca, como nos cafés da trilogia de Álvaro Guerra, os personagens descrevem, interpretam e debatem a pequena história quotidiana da sua terra e, com visão própria, o curso da grande história de todo o mundo.
mais sobre mim
Fevereiro 2020
Dom
Seg
Ter
Qua
Qui
Sex
Sab

1

2
3
4
5
6
7
8

9
10
11
12
13
14
15

16
17
18
19
20
21
22

24
25
26
27
28
29


pesquisar
 
subscrever feeds
blogs SAPO