Novembro 12 2020

Publiquei ontem, dia de São Martinho, uma carta redigida por Garcia Pereira em que ele, com dados e nomes concretos e não com base em insinuações vagas, desmascara o Chega e se pronuncia sobre alguns dos seus dirigentes. Os comentários em relação ao texto foram de três tipos. O primeiro visa descredibilizar Garcia Pereira, atacando o seu passado. Como não tenho nenhuma particular razão para o defender, direi apenas que acho curioso que quem fez esse tipo de comentários nunca tenha desmentido substantivamente os seus argumentos. Assim, acabam por lhe dar razão quanto aos factos, o que interessa.

Interessa? Sim, a alguns. Para outros, na lógica trumpista, a realidade é o que lhes convier e, perante evidências, limitam-se a vociferar elogios a André Ventura, seja ele e os seus amigos quem forem, e façam o que fizerem. São comentários simplesmente estúpidos.

O terceiro é o que mais me interessa: o daqueles que, por um lado, timidamente se demarcam do Chega, mas, por outro lado, só falam da geringonça e dos extremistas de esquerda, que equiparam aos de direita, proclamando o direito de ambos à existência e a ocupar o poder. É neste argumento, utilizado principalmente por pessoas ligadas ao PSD (não sei se também alguém ao CDS), que me quero centrar.

Os que o utilizam parecem estar a aplacar a consciência e a justificar o injustificável: que a direita civilizada (ainda há tão pouco tempo David Justino tinha falado da coragem que é hoje necessária para se ser moderado) tenha estendido a mão à direita xenófoba e trauliteira, para chegar ao poder nos Açores. Vamos falar direito!

Em primeiro lugar, este argumento, tal como o primeiro, peca na lógica, pois foge a pronunciar-se sobre os factos denunciados e desvia a atenção para outro plano, o da legitimidade da aliança entre o PSD, o CDS, o PPM, a Iniciativa Liberal e o Chega nos Açores. Portanto, aceita como válidas as denúncias, mas não o diz.

Em segundo lugar, peca pela moral da história. Se eventualmente o PS tivesse cometido um erro por se aliar ao PCP, ao BE e aos verdes, e agora (isso sim, é muito mau) ao PAN, isso nunca justificaria que se cometesse um erro idêntico do outro lado do espectro político. Sendo assim, presumo que os que usaram esse argumento acham bem a aliança com o Chega. Mas estão enganados (ou, se não estão, pior).

Em terceiro lugar, e mais importante, peca na substância. O Chega e o PAN não são o PCP, nem sequer o BE, partido do qual ainda recentemente fui vítima de perseguição, ao melhor estilo ditatorial. Mas isso não me tolda a visão nem alimenta o ódio. Na verdade, o PCP e o BE (principalmente este) têm no seu Programa disposições inaceitáveis para quem ama a liberdade e a democracia. Mas o Chega (falemos agora do que está em causa neste post), não tendo coisas dessas no Programa, baseia a sua prática em propostas atentatórias não apenas da liberdade e da democracia, mas também da própria dignidade humana. O PCP e o BE têm nas suas raízes históricas ideologias que deram origem a grandes atrocidades e crimes contra a Humanidade, mas eles próprios adotaram outro caminho, ao passo que o Chega parece propor o regresso às ignomínias que inspiram a sua ideologia. O PCP e o BE aceitam participar no sistema democrático que constitui a base de um consenso muito alargado nas nossas sociedades e um valor sólido das nossas culturas, enquanto o Chega se propõe destruir esse sistema e essas culturas (nisso é alma gémea do PAN, e o PS é tão culpado como o PSD e o CDS). Não são, pois, partidos comparáveis. O PCP e o BE não serão os paladinos da democracia liberal, mas aceitam-na e convivem com elas há décadas. O Chega não.

O PCP e o BE não constituem uma ameaça para as democracias ocidentais. Pelo contrário, equilibram o poder do capital e das megaempresas a favor do trabalho (na realidade, na minha apreciação, quem o faz é o PCP, dedicando-se os “betinhos de esquerda” do BE a “causas fraturantes”, algumas delas justas, mas outras, em particular o animalismo, de valor mais do que duvidoso). O populismo xenófobo que caracteriza o Chega e os congéneres no mundo moderno, sim, oferecem um perigo real e próximo. Qualquer cedência constitui um perigo real (e não mitológico, como acontece com os parceiros da geringonça). Qualquer descuido pode ser a morte da liberdade e da democracia.

Estes partidos nunca dizem ao que verdadeiramente vêm. Aparecem a cavalgar descontentamentos justos, e a promover outros não tanto, para alcançar o poder e daí desferir o seu golpe. Lembram-se da canção do Sérgio Godinho? Vêm com “pezinhos de lã”, que precedem as “botas cardadas”!

Sendo assim, é legítimo perguntar ao PSD e ao CDS se vale tudo, incluindo trazer o “alien” para dentro de casa, passo importante para ele cumprir o desígnio de se livrar deles, que são para o Chega meros “compagñons de route”, e alcançar o poder totalitário.

O Chega tem mesmo aliados! E isso é muito perigoso.

publicado por cafe-vila-franca às 23:27

No Café Vila Franca, como nos cafés da trilogia de Álvaro Guerra, os personagens descrevem, interpretam e debatem a pequena história quotidiana da sua terra e, com visão própria, o curso da grande história de todo o mundo.
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