Agosto 05 2015

Cecil, o leão “estrela” do Zimbabwe, foi morto por um caçador furtivo. Criou-se uma onda de simpatia pelo leão e de condenação do caçador (sendo vários os apelos ao regresso à pena de morte) que não tem paralelo com a convivência diária com a morte e o sofrimento atrozes e cruéis que varrem de lés a lés o planeta atingindo mulheres, crianças e pobres vítimas da guerra, da intolerância, do fanatismo, da exploração mais selvagem e do completo desrespeito pelos direitos humanos.

A comoção por Cecil, compreensível, tem muito de irracional e foi aproveitada de forma demagógica pelos animalistas, grupo radical e fundamentalista que representa a tentativa de rutura final entre o Homem e a natureza e do Homem com a sua própria natureza.

Cecil era, como todos os leões em estado selvagem, um caçador. Ele e o seu bando, como todos os bandos de leões, matam outros animais para se alimentarem e para defenderem o seu território. As crias de Cecil serão mortos sem hesitações pelo(s) leão que vier a ocupar o lugar de Cecil no bando de leoas viúvas. Os leões caçam e matam outros animais com a mesma naturalidade com que golfinhos machos tentam matar crias recém nascidas “apenas” para que a mãe fique disponível para acasalar mais cedo (cito este exemplo, por ter também sido notícia recente um caso destes), e com que todos os outros animais se comportam em função do seu instinto.

O Homem, como disse Ortega y Gasset em Conferência proferida no Grupo Tauromáquico Setor 1 publicada numa obra sobre “A Caça e os Toiros”, também conserva o seu instinto caçador. Que controla por meio da caça legal. Como conserva instintos sexuais – tal como os golfinhos e os leões, os cães e os gatos, os ratos e todos os outros viajantes na Arca de Noé. No entanto, a sexualidade humana é bastante diferente da dos outros animais e plantas. Por exemplo, o incesto é um tabu em todas as sociedade humanas. Foi, segundo Claude Levi-Strauss, a proibição do incesto que criou a cultura. Não podendo relacionar-se sexualmente com membros do seu grupo, homens e mulheres tiveram de contactar outros grupos, comunicar com eles e estabelecer acordos matrimoniais mais ou menos complexos. Seria essa a origem de toda a cultura, isto é, da descolagem do animal homem em relação ao comportamento meramente instintivo.

Os homens, os únicos animais que produzem cultura, são capazes de refletir e interferir, segundo regras que eles próprios produzem, sobre os seus instintos e humanizá-los, isto é, regulá-los de acordo com determinados padrões culturais, variáveis de sociedade para sociedade.

É por isso que comportamentos como o incesto ou a violação são condenados e punidos. Esses comportamentos representam o regresso ao estado natural, descontrolado, animalesco, bestial, que a sociedade não pode tolerar. O mesmo acontece com a violência. Alguém que adota um comportamento violento e agride ou mata outra pessoa (se não se encontrar investido da função de uso da violência, como a que está atribuída aos exércitos e às polícias), deixando-se controlar pelo instinto animal, será, uma vez descoberto e detido, condenado na justiça. Não passa pela cabeça de ninguém culpar um leão por matar a gazela ou a zebra, ou punir o golfinho infanticida, ou o cavalo que faz sexo com a mãe ou a irmã, o cão que morde uma pessoa, o rato que transmite doenças, ou um longo etc. Eles agem de forma instintiva, não se lhes pode atribuir o dever de atuar de forma diferente. Ao contrário dos homens, a quem se pode, e deve, exigir o cumprimento de uma série de deveres e ater-se a uma série de regras, incluindo as regras morais que lhes permitem distinguir o bem do mal.

A caça tem regras. Sempre teve. Nos nossos dias, com o perigo de extinção de algumas espécies, essas regras tornaram-se mais apertadas. O Estado e as Associações de Caçadores controlam a aplicação das regras e procuram evitar incumprimentos. Mas, como acontece com a violência e a sexualidade, nem sempre a sua ação é eficaz. Emergem assim comportamentos socialmente condenáveis como o incesto, a violência sobre mulheres, crianças, idosos ou outras pessoas e às vezes povos inteiros mais fracos do que o agressor, ou a caça furtiva.

Perante esse e muitos outros fenómenos relativos às regras e ao seu incumprimento, a atitude civilizada é a de reforçar os mecanismos que permitam controlar o comportamento desviante (às vezes, quando perpetrados pelos Estados, esses comportamentos são “normais”, mas nem por isso menos condenáveis, como é o caso da guerra).

O que é totalmente abusivo é utilizar casos emotivamente significativos (e por isso também objeto de muita manipulação) para tentar impor aos outros, de forma totalmente arbitrária, crenças, convicções, gostos e comportamentos de grupos militantes que julgam e condenam de forma arbitrária todos os comportamentos contrários às suas preferências, usando mesmo meios violentos (como fazem os bandos animalistas agressivos).

Uma coisa é condenar a caça clandestina. Eu (que não sou caçador), e penso que todos os caçadores civilizados, condenam-na. Outra coisa totalmente diferente é pretender abolir a caça. Deixar de comer carne, peixe ou até ovos é uma opção de cada um, enquanto não se transforma num programa político que se vende em nome de valores maiores, como a defesa do ambiente, “Cavalo de Troia” de interesses inconfessáveis do totalitarismo cultural.

publicado por cafe-vila-franca às 22:34

Excelente artigo Luís.
Muitos parabéns.
Grande Abraço
Alexandre Fernandes a 6 de Agosto de 2015 às 13:24

No Café Vila Franca, como nos cafés da trilogia de Álvaro Guerra, os personagens descrevem, interpretam e debatem a pequena história quotidiana da sua terra e, com visão própria, o curso da grande história de todo o mundo.
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